segunda-feira, 20 de maio de 2013

Entrevista com Marcelo Camelo

Jornal O Globo
Publicado: 19/05/13

Marcelo Camelo: ‘Minha música e minha vida são cada vez mais uma só coisa’


RIO - O DVD “Mormaço” poderia ser apenas o registro do recente show de voz e violão — a versão em CD, “Ao vivo no Theatro São Pedro”, é isso. Mas Camelo convidou o diretor americano Jack Coleman para pensar o extra “Dama da noite”, “um filme que fosse uma alegoria da música”. Por e-mail, o artista cita referências que o levaram ao DVD e fala da ligação entre sua música e sua vida.


Qual era sua ideia para o DVD “Mormaço”?

Minha intenção era fazer um filme mais poético, para contrapor ao último DVD, documental, sobre o show. Vinha assistindo muito a “A cor da romã” (filme de Sergei Parajanov lançado em 1968), com aquela linguagem simbólica, onírica. Achava que a minha música estaria bem ao lado de uma obra assim. Quis um filme que fosse como a minha música e não sobre a minha música. Tinha na cabeça o Parajanov, a (Maria Gabriela) Llansol, escritora com quem compartilho a tentativa de usar o cotidiano como chave para o infinito, o documentário sobre o (guitarrista) Fred Frith chamado “Step across the border”... Eu conhecia o Jack (Coleman) e o trabalho dele, por causa dos clipes do Growlers e de seus filmes de surf, e achei que conseguiríamos fazer um filme assim com ele.



Por que os nomes “Dama da noite” e “Mormaço”?

São lembranças remotas de Jacarepaguá, do bairro e da rua onde morei até os 15 anos e que têm uma presença forte na minha vida. Agora que voltei a morar na Zona Oeste e estou tendo contato com esses entes como a lagartixa, a samambaia, os insetos tropicais, pareceu para mim o encerramento de um ciclo longo pessoal. A dama-da-noite, que é uma planta, e o mormaço têm um fulgor vizinho nessas minhas memórias. São da natureza da sedução, da conquista indireta, como acho que minha música é às vezes. A dama-da-noite tem um cheiro que é dos meus preferidos, e sempre numa circunstância corriqueira, um portão de casa, um jardinzinho qualquer, mas um cheiro forte e só dela que faz dobrar o joelho da gente quando passa. Minha música e meu método carregam reminiscências dessa parte da vida na sua origem.


O que motivou a escolha, em “Dama da noite”, pelas imagens de baixa fidelidade, focos imprecisos?

A escolha de filmar em película sugere o caráter manual e laborioso do processo. É uma tentativa de estar lado a lado com o processo vivo que é a criação de uma obra de arte, de tempo de revelação, fixação, nas incompletudes e limitações. E arrisca ganhar com isso também o brilho e a vivacidade de uma obra que incorpora suas imperfeições na linguagem. Um filme formado por muitos fotogramas físicos e revelado quimicamente, além de ser muito mais caro e dar muito mais trabalho, é também mais extenso, gosto de pensar, no seu campo possível de interpretação. A fidelidade em questão é com a beleza e poesia e não com a realidade.
 

O que você buscou nas formações instrumentais que aparecem na trilha de “Dama da noite”?

São músicas que fiz ao longo desse período desde o último registro em filme. Cada uma delas tem uma história diferente, uma intenção diferente. Queria ter também, além das canções, um discurso sem texto, sem idéias faladas. Acho que pra estar mais ao lado dessa expressão intuitiva, dessa linguagem mais indireta.


Tanto no seu violão (e na rabeca de Thomas Rohrer, que participa do show) quanto na forma como as imagens são usadas em “Dama da noite”, há uma exploração das texturas. Qual a importância da textura para você? 

Sinto que o tipo de registro sonoro por exemplo muda muito a natureza da informação. Não existe uma distinção muito clara entre a mensagem em si e o registro da mensagem. Existe uma correlação entre forma e conteúdo que cria a mensagem na pessoa que a recebe. Por isso sempre me interessei pelos tipos diferentes de registro de som. Em imagem é o mesmo. Filmar uma cena com câmeras diferentes pode trazer pra ela outro significado. O Thomas traz essa distinção pra parte do espetáculo ao transformar com a textura do seu instrumento a sonoridade do violão e da voz sozinhos. Achei que seria importante criar uma diferença de textura sonora ao longo do show pra mudar o eixo dos acontecimentos.


A fronteira entre vida e música aparece fluida em seus projetos. Desta vez, há imagens de sua intimidade, a presença da sua mulher, Mallu Magalhães. Como você avalia a importância de Mallu para sua música?

Minha música e minha vida vão cada vez mais se tornando uma só coisa. Não sei em que momento comecei essa caminhada nem por quê, mas desconfio que sobrou pra mim esse fio de possibilidade, uma vez que a ideia de usar uma outra entidade pra compor minha persona artística passa longe da minha habilidade. Minha expressão artística vem dos meus sentidos, que estão estreitamente ligados ao meu entorno e às entidades que habitam comigo esses espaços.


Comente a presença de “Luzes da cidade” e “Dois em um” no show do DVD.

“Luzes da cidade” fiz para este show, quando foi estrear em SP, antes de ter a ideia de fazer uma turnê ou um disco com ele. “Dois em um” é uma música muito antiga, que nunca tinha tocado ao vivo, e me pareceu uma ocasião apropriada. Neste show também já toquei outras músicas minhas que nunca tinha gravado, como a que fiz pro Erasmo. Acho que o fato de o show ser basicamente eu e um violão torna minha missão difícil em um sentido, mas, nesse ponto, o de amarrar as diferenças estéticas e temporais de cada música, a coisa fica mais fácil.


Sozinho, fica ainda mais claro seu uso do violão. Como é sua rotina de estudo? O que você escuta pensando nesse estudo? 

O violão já grudou em mim de um jeito simbiótico. São tantos anos tocando que ele não me convida mais pra coisas desafiadoras. O que eu estudo são os sons e as ideias. A mistura destas duas coisas. Uma pela outra e a outra por uma. Aí quando vou pro violão eu vou pacientemente tentar desvendar estas coisas. Mas não estudo nada além disso.

Você gosta de ouvir a plateia cantar junto. O que é mais prazeroso nisso?

Eu gosto muito do som que faz. :)
 


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